terça-feira, 1 de julho de 2008

Um processo não só justo mas necessário…

A propósito do Júri de Certificação que se realizou no passado dia 27 de Junho para o nível Básico, apraz-me citar o nosso Prémio Nobel da Literatura, José Saramago:
Em vez de umas quantas propostas arrojadamente gratuitas sobre e para uso do terceiro milénio, que logo ele, mais do que provavelmente, se encarregará de reduzir a cisco, por que não nos decidimos a pôr de pé umas quantas ideias simples e uns quantos projectos ao alcance de qualquer compreensão? Estes, por exemplo, no caso de não se arranjar coisa melhor: a) desenvolver desde a retaguarda, isto é, fazer aproximar das primeiras linhas de bem-estar as crescentes massas de população deixadas atrás dos modelos de desenvolvimento em uso; b) suscitar um sentido novo dos deveres humanos, tornando-o correlativo do exercício pleno dos seus direitos; c) viver como sobreviventes, porque os bens, as riquezas e os produtos do planeta não são inesgotáveis; d) resolver a contradição entre a afirmação de que estamos cada vez mais perto uns dos outros e a evidência de que nos encontramos cada vez mais afastados; e) reduzir a diferença, que aumenta em cada dia, entre os que sabem muito e os que sabem pouco. Creio que é das respostas que dermos a questões como estas que dependerá o nosso amanhã e o nosso depois de amanhã. Que dependerá o próximo século. E o milénio.” (in Notícias do Milénio, 1999).
A referida sessão de Júri contou com candidatos ao nível B3, equivalente ao 9º ano de escolaridade, que tinham uma média de idades compreendida entre os 40 e os 45 anos, geração designada pelo Dr. Rodrigo Gomes, avaliador externo, como a “geração das não oportunidades”, precisamente por lhes ter sido retirado o direito à educação num tempo em que o 4º ano de escolaridade era considerado mais que suficiente e era suposto começar-se imediatamente a trabalhar, mesmo que essa não fosse a vontade do indivíduo.
Uma das adultas certificadas neste Júri referiu que: “Não poder estudar ficou-me atravessado, por isso o processo de reconhecimento, validação e certificação de competências foi muito bom para mim, porque me sinto mais valorizada e com ânimo para continuar a estudar, tal como sempre sonhei.”
Neste sentido, o Dr. Rodrigo Gomes sublinhou que este processo baseia-se na Igualdade de Oportunidades, conferindo legitimidade às competências adquiridas e desenvolvidas pelos adultos ao longo da vida e permitindo-lhes ficar em igualdade de circunstâncias perante aqueles que tiveram um diferente acesso à educação, ou seja, permitindo-lhes uma justa progressão na carreira, o que até aqui não acontecera não por falta de capacidades, mérito ou competências, mas simplesmente por falta de um certificado. Assim, a determinação que leva estes adultos a submeterem-se a um processo destes é um contributo imprescindível para o desenvolvimento das instituições/empresas com que colaboram, pois valoriza os seus recursos humanos, qualificando a sociedade em geral.
Portanto, este processo elimina barreiras que levam nomeadamente à exclusão (a qualquer nível) e ao subdesenvolvimento económico e social.
O Dr. Rodrigo Gomes caracterizou ainda o processo de reconhecimento, validação e certificação de competências como um processo reflexivo e analítico, que conduz a uma autodescoberta, já que cada adulto fica a conhecer-se melhor, reconhecendo em si mesmo as competências adquiridas e desenvolvidas que o valorizam e distinguem dos outros, daí que o processo seja também estruturante.
Quanto a nós, equipa que acompanhou estes adultos, cabe-nos reconhecer também os ensinamentos que eles nos transmitem através das suas experiências, escolhas e percursos de vida singulares: a consciência ambiental que os leva a reutilizar materiais e objectos para criar novas coisas, reciclando o que seria desperdício; a superação de dificuldades que lhes foram impostas para continuarem os seus percursos escolares; a consciência social que os leva a investigar sobre as crianças de rua de Angola; os esforços dos motoristas de transportes públicos que todos os dias tentam contornar a falta de civismo nas nossas estradas; as tarefas de uma alfandegária num tempo em que a Europa ainda tinha “fronteiras”; a adaptação a um país diferente, na sequência da emigração, ou a uma vida urbana, na sequência dos movimentos migratórios constantes do campo para a cidade; a gestão eficaz do tempo e a polivalência (o ser-se capaz de dedicar-se a tantas coisas ao mesmo tempo…).
Enfim, estas são apenas algumas das competências de alguns adultos que foram evidenciadas e validadas ao longo do seu processo… Sem o RVCC estas competências continuariam à margem de uma certificação, excluídas por uma sociedade que continua agarrada aos mesmos preconceitos e às mesmas concepções, enfim, uma sociedade que continua a sobrevalorizar os conhecimentos em detrimento das competências, apesar de só se desenvolver graças aos que têm estas e não aqueles. Na verdade, muitos ainda não sabem que as competências são também “saberes”, mas são-no em acção…
E, convenhamos, do que é que todos precisamos? Nada mais, nada menos do que acção, porque é necessário ultrapassar modelos de desenvolvimento caducados, criar novos modelos que assentem no exercício pleno de direitos e deveres, reduzindo as desigualdades sociais que ainda prevalecem e que por vezes parecem acentuar-se, contra as nossas expectativas. Daí ter citado acima o excerto de José Saramago… é que alguns anos depois, as suas sugestões continuam a fazer todo o sentido.
É nesta linha de acção que nós, equipas dos Centros Novas Oportunidades, nos envolvemos diariamente neste grande projecto, pois acima de tudo este é um processo não só justo, mas necessário ao desenvolvimento da nossa sociedade.
Por: Cláudia Vale,
Formadora de LC/CE

Sem comentários: